Repare nos móveis da sua casa. Provavelmente, você tem uma cozinha, sala ou quarto com móveis planejados, sob medida. Pôde escolher o design, a cor, a textura, os relevos. Este mobiliário, atualmente feito nas técnicas que chamamos MDF e MDP, envolve peculiaridades como uso de matéria-prima certificada, alta tecnologia e uma boa dose de arte também. E, no que se refere à produção, antes de chegar à mão do marceneiro ou da indústria moveleira, tem uma característica interessante: agrega dois segmentos da indústria da madeira – o de painéis e o de papéis decorativos – que se interconectam e se concentraram em uma determinada região do país, mais especificamente no Paraná, para alcançar posição de destaque nos mercados doméstico e internacional.
As siglas MDF e MDP resumem a técnica empregada na produção pelo segmento industrial de painéis de madeira. Vêm respectivamente do inglês medium density fiberboar, ou chapa de fibra de madeira de média densidade, e medium density particleboard, painel de partículas de média densidade. E são uma evolução tecnológica de técnicas mais amplamente usadas antigamente no mobiliário, como aglomerados e compensados.
Depois de prontas, essas chapas têm duas destinações: são vendidas cruas, sem revestimento, para que o acabamento seja feito na indústria moveleira como pintura ou laqueação. Ou, então, podem receber um revestimento de papel de melamina BP (baixa pressão), conferindo aspecto amadeirado, colorido ou com outros acabamentos que remetem a pedra ou tecido, antes de ir para a indústria de móveis ou lojas especializadas para marceneiros. O segmento industrial responsável por isso é o de papéis decorativos.
Ambos os segmentos, painéis de madeira e papéis decorativos, são apenas um pedaço do ciclo da madeira, abraçados pela indústria de base florestas – que, sozinha, gerou uma receita bruta na cadeia produtiva de quase R$ 245 bilhões em 2021, segundo o último relatório divulgado pela Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), associação que representa o setor.
Mas o recorte que envolve os dois negócios, especificamente, é distinto por alguns fatores. Um, pela concentração dos players de painéis em uma região que atraiu unidades de negócios da indústria da madeira por conta da proximidade das florestas plantadas. E outro, porque as fábricas de papéis decorativos chegaram pela facilidade logística e de negócios – além de um quê cultural.
A região em questão é a de Curitiba, capital do Paraná. Grandes produtoras de painéis, como Berneck, Sudati, Arauco e Guararapes mantêm sedes administrativas ou escritórios comerciais na região – embora as unidades fabris já estejam mais espalhadas. É a área que concentra o maior aglomerado do segmento: 4 do total de apenas 10 fabricantes instalados no Brasil. Isso torna as indústrias paranaenses grandes responsáveis por enquadrar o país entre os 10 maiores produtores de painéis de madeira do mundo (dado também da IBÁ). E, no ramo de papéis decorativos, os 4 únicos players instalados no país estão também na região metropolitana de Curitiba. São multinacionais alemãs que abastecem o mercado de toda a América Latina e compõem um seleto grupo com não mais do que 10 nomes espalhados pelo mundo.
Por que o Paraná?
A resposta, para Graça Berneck Gnoatto, copresidente e diretora comercial e de marketing da Berneck Painéis e Serrados, é simples. “Toda indústria de painel de madeira no Brasil sempre vai estar próxima à área produtora de floresta plantada. E o Paraná é um estado que tem grandes áreas plantadas com pinus e eucalipto”, explica.
Isso já foi mais evidente no passado, quando grandes nomes da indústria da madeira viram no estado super potencial. A exemplo da própria Berneck, que, embora tenha pouco mais de 70 anos, iniciou a produção no segmento painéis na década de 1980 em Araucária, região de Curitiba , ainda com os antigos painéis reconstituídos. Hoje, é a segunda maior produtora do Brasil em volume de painéis de madeira, incluindo aí os MDFs, MDPs e, ainda, os HDFs, que são aqueles painéis mais finos utilizados no interior dos móveis, como armários e gavetas. De 2012 para cá, a indústria vem espalhando suas unidades fabris para outros estados onde as florestas plantadas também se expandiram, como Santa Catarina e Mato Grosso.
Na mesma linha vai a Sudati, com sede em Curitiba e unidades industriais no Paraná e Santa Catarina. O vice-presidente da empresa, João Eduardo Pedroso Sudati, lembra que o Paraná sempre foi reconhecido como um dos grandes produtores da indústria da madeira pela concentração de ativos florestais e disponibilidade de florestas próprias para o processamento industrial.
“Naturalmente, esse fator contribui para que diversas indústrias busquem se posicionar no estado. Além disso, a acessibilidade na cadeia de distribuição pela localização geográfica também é um fator importante, facilitando a participação nos mercados consumidores no cenário doméstico e considerando principalmente as empresas que participam no segmento de exportação de painéis, com acesso direto ao porto (de Paranaguá)”, acrescenta.
Ambas são importantes supridoras do mercado doméstico e exportadoras. No caso da Berneck, 15 a 20% da produção é exportada para mais de 60 países. No Brasil, a comercialização do que produz de painéis acontece entre a indústria moveleira e produtos de marcenaria, numa proporção média de 50% cada. No caso da Sudati, o negócio MDF é voltado ao mercado doméstico, com previsão de expansão para a produção destes painéis nos próximos anos.
Na sequência, as papeleiras, um setor indústria-arte
A consequência de ter importantes indústrias de painéis concentradas foi, portanto, a chegada das fábricas de papéis decorativos, segmento essencial para completar o produto que resultará no mobiliário. Na parte de processamento mecânico elas se assemelham à fabricação dos painéis, uma vez que também executam compactação de minúsculos fragmentos de madeira selados por reações químicas. A diferença, no caso, é a espessura da folha e a forma como é tratada quimicamente.
Antes, para se ter um aspecto de madeira no móvel em MDF ou MDP, era preciso recorrer às lâminas naturais, bastante caras. “O papel impresso, decorativo, se tornou a alternativa mais competitiva. E com as mudanças na estrutura química, eles se tornaram muito mais resistentes”, explica Marcelo Santos, diretor comercial da Impress Decor, sediada em Araucária. Além disso, por ser uma impressão, permitiu conceder aspectos visuais que conferem diferentes cores e texturas, não mais apenas a de madeira.
Quando o mercado começou a se desenvolver para o revestimento, a escolha do Paraná para sediar as empresas levou em conta não apenas o atributo logístico, mas ainda um outro fator: o cultural. Depois da Impress, vieram Schattdecor, Interprint e Lamigraf – todas de origem germânica. “Por questão de clima, concentração de colônias, tudo isso fez com que se criasse uma afinidade cultural em ter no Paraná essa presença tão concentrada”, acredita Marcelo Santos. A presença de descendentes de alemães no Paraná, especialmente no sudeste do estado, é bastante marcante.
Dentro da indústria de papel como um todo, o setor de papéis decorativos é um fragmento pequeno, se pensarmos em volume. Mas muito nichado e de importante valor agregado. Essa característica tem a ver com a tecnologia de ponta embarcada nos processos, além dos estudos de tendência de cores e texturas. Um setor indústria-arte, de fato. Mas que agrega números importantes. “Em volumetria, nosso negócio representa entre 1,5% e 2% do que é o consumo de papel no mercado brasileiro. Mas o valor de mercado, frente ao negócio papel como um todo, representa entre 10 e 12% da indústria”, compara Marcelo Santos.
A produção estimada pelos 4 grandes fabricantes concentrados no Paraná, segundo Santos, é de cerca de 500 a 600 milhões de metros quadrados de papéis decorativos ao ano. Isso significa uma média de R$ 250 milhões por player, o que passa de R$ 1,2 bilhão anualmente em valores brutos de produção.
Boa parte dessa produção é exportada. O Brasil está para a América Latina assim como a Europa está para o resto do mundo em produção e venda desses materiais. Daqui, as empresas vendem para mercados como Equador, Chile, México, Argentina e Colômbia.
“Apesar de bastante competitivo, é um mercado de grande potencial e demanda. Nos últimos anos, vimos um amadurecimento do consumidor e do especificador em relação ao produto, a forma de uso e vantagens, o que impulsionou um crescimento constante para a nossa indústria”, avalia Sandra Mohr, diretora comercial e de design da Schattdecor, instalada em São José dos Pinhais.
A marca entrou no Brasil em 2003 e, desde então, investiu em unidades de impressão, envernizamento e impregnação (que é a parte química do processo, quando o papel fica pronto para ser prensado sobre o painel e o conjunto adquire as características de produto final). “A modernização do nosso parque fabril nos permite dizer que estamos preparados para o crescimento (do mercado) da América Latina. Nos últimos três anos, mais do que dobramos nossa capacidade de produção, o que demonstra uma perspectiva positiva para o mercado nos próximos anos”, complementa.
Setores que cresceram com a pandemia
O “fique em casa” rendeu muito para esses dois segmentos da indústria da madeira. Com a pandemia de Covid-19, as pessoas literalmente se internalizaram em suas casas, inclusive por conta do trabalho remoto. E, automaticamente, deixaram de gastar com lazer do lado de fora. Resultado: decidiram fazer ou reformar móveis. As vendas de MDF e MDP totalizaram 4,9 e 3,2 de milhões de m³, um aumento de 15,7% e 13,1%, respectivamente, entre 2020 e 2021, segundo o relatório da IBÁ.
“Vivemos os melhores anos do ponto de vista de rentabilidade de toda a indústria”, afirma Marcelo Santos. “Nunca, nenhuma fábrica de painéis ou papéis ganhou como nesses anos.” Veio 2022, as pessoas voltaram aos poucos a circular, e o foco no ambiente doméstico se dispersou. Agora, após um período intenso de vendas e produção, as indústrias estão voltando aos patamares de 2019 e se preparando para o enfrentamento à instabilidade econômica causada pelo desaquecimento da construção civil no mercado norte-americano e o processo inflacionário desencadeado em todo o mundo com os altos preços logísticos, que, entre outros setores, impactam diretamente na indústria da madeira.
“O desafio é muito grande em manter a criatividade na venda, o atendimento ao cliente e entregar um produto com mais qualidade. E a gente tem os desafios de custo, porque ao longo do ano passado a queda no volume de vendas não nos permitiu fazer repasse de valores ao produto e a cadeia de suprimentos aumenta de todos os lados”, cita Graça Berneck.
“Como os últimos anos foram de instabilidade global, com a pandemia da Covid-19, a guerra e a crise energética na Europa, temos enfrentado variações cambiais, obstáculos na cadeia de suprimentos de matéria-prima importada e altas nos custos de transporte”, concorda Elisa Toazza, gerente de design, marketing e comunicação da Schattdecor.
Mas isso não impede uma visão otimista para o futuro. Para João Eduardo Sudati, a perspectiva de retomada econômica é positiva, se controlada a inflação e incentivado o consumo por meio de taxas mais competitivas no mercado. “A combinação destes fatores tende a apresentar um cenário mais atrativo no longo prazo”, acredita. Tanto que os planos incluem expansão. “Os próximos anos serão marcados por aumento na capacidade produtiva, com novos investimentos e maior eficiência da indústria”, antecipa.
Texto: Lígia Martoni – Gazeta do Povo
Foto: Banco de imagens APRE – Zig Koch